O regente

Revista 451
edição 21
abril de 2019

No primeiro dia de aula, em março de 2017, dispensando apresentações, Luiz Antonio de Assis Brasil entrou no laboratório do quinto andar do prédio de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) em Porto Alegre e anunciou: “Perdi minha fantasia de gorila”.

Diante da desorientação inicial de uma plateia de jornalistas, professores, psicólogos, advogados e financistas, complementou: “Andem, escrevam qualquer coisa sobre isso”. Depois da leitura de cada um dos textos, observou que a maioria estava em primeira pessoa. “É um fenômeno do nosso tempo”, limitou-se a dizer.

Assis Brasil, 74, é dono de um estilo clássico: cavanhaque, óculos de aros pretos e um terno indefectível até em dias estivos, combinando o lenço do bolso do paletó com a cor das meias. O figurino talvez justifique as temperaturas baixíssimas em que mantém o ar-condicionado da sala por onde já passaram, aos vinte e tantos anos, autores importantes da literatura contemporânea brasileira: Michel Laub, Cíntia Moscovich, Daniel Pellizzari, Letícia Wierzchowski, Daniel Galera, Luisa Geisler, Carol Bensimon.

O professor nunca quis escrever um manual. Romancista com mais de vinte livros na bagagem, foi convencido a dar um tempo na ficção quando, em uma reunião com Luiz Schwarcz, presidente do Grupo Companhia das Letras, o editor apontou para a estante do seu escritório: “Olha a quantidade de ex-alunos seus que estamos publicando. É você quem tem que escrever esse livro”.

O resultado é Escrever ficção: um manual de criação literária, abrangente manual de criação literária, compilação de um trabalho que, desenvolvido desde 1985, culminou nos primeiros cursos de graduação, mestrado e doutorado da disciplina no país.

Bolero de Ravel

Em 2017, o nipo-britânico Kazuo Ishiguro venceu o Nobel de Literatura e se tornou o primeiro escritor com formação em escrita criativa a levar o prêmio. Dos egressos de cursos do gênero, contudo, não foi o primeiro a ser reconhecido com uma grande láurea: os americanos Richard Ford e Michael Chabon, além do dominicano Junot Díaz, abocanharam o Pulitzer, por exemplo, e a indiana Kiran Desai levou o Man Booker Prize de 2006 com O legado da perda.

Seriam bons argumentos contra as críticas que já foram feitas no Brasil a esse tipo de curso. Um bom escritor não precisa de formação, dizem alguns; oficinas literárias tendem a engessar o texto e uniformizar estilos, dizem outros; e, recentemente, com a proliferação da prática, reforçou-se a pecha de modismo.

Sobre o último ponto, Assis Brasil reconhece que experiências aventureiras e irresponsáveis podem desabonar a reputação da disciplina. “Eu diria que hoje todo escritor brasileiro é ministrante de oficinas, então isso é uma questão.”

Mas a tradição da escrita criativa é antiga em países anglo-saxões: a primeira experiência numa instituição de respaldo de que se tem notícia foi a da Universidade de Iowa, em 1936. “Um escritor se forma com muita leitura, muita imaginação, muita prática e, se possível, na frequência de uma oficina de literária”, diz o professor, que repele a propalada noção do dom para a escrita. Se um bailarino, um pintor ou um escultor precisam adquirir um conhecimento sistematizado, por que haveria de ser diferente para um escritor?

Também não subsistiria o juízo segundo o qual a produção literária nesses meios seria padronizada. A escritora Veronica Stigger, que também preside oficinas, afirma que esses ambientes não ensinam a escrever, mas a experimentar. “A ideia é se deter no texto, observar como se estrutura, para que o participante procure seus próprios modos de expressão.”

Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Luís Augusto Fischer atribui um caráter elitista às críticas a esses cursos. “Tratava-se a produção literária não como arte ou como consciência do mundo, mas como item de prestígio social: se muitos podem usufruir dele, deixa de ser prestígio”, diz ele, que atua no campo desde 2005.

No Brasil, um dos primeiros a implementar oficinas de criação literária foi o crítico Silviano Santiago, vencedor do Prêmio Jabuti de 2017 com Machado. No Rio, ele coordenou uma experiência do gênero em 1975, ao lado de Affonso Romano de Sant’Anna.

“Nossa oficina funcionou nos tempos da ditadura, então prezávamos pela liberdade, mas exigíamos que o aluno tivesse conhecimento de literatura”, lembra Santiago. “Discutíamos os manuscritos dos colegas. Convidamos a Clarice Lispector e o Rubem Fonseca para participar de algumas aulas.”

Se as lições de Santiago e Sant’Anna tinham um aspecto mais libertário, o curso de Assis Brasil baseia-se na observação, prioriza a produção de narrativas longas (novela e romance) e tem uma metodologia criteriosa.

As aulas são semanais e acompanham o período letivo da PUC-RS durante um ano. No primeiro semestre, alguma teoria e muitos exercícios práticos, dentro e fora de sala. No segundo, os alunos preparam contos, que são amplamente discutidos e analisados pelos colegas.

Uma dinâmica característica da didática de Assis Brasil é praticada justamente na última metade do curso. O professor divide seus alunos em dois grupos, um para analisar aspectos narrativos e formais do texto em discussão, e outro para discutir a integridade psicológica do personagem e sua relação com o entorno. Ao contrário do primeiro grupo, que deve se debruçar sobre questões técnicas, o segundo não exige nenhum conhecimento de literatura: basta compreender a natureza humana.

Não à toa, Assis Brasil é um entusiasta de Ernest Hemingway e Charles Bukowski, autores que valorizam  a vivência em seu universo literário e que buscaram fazer de suas obras metonímias de si próprios.

Em outra explanação que costuma fazer, o professor reproduz Bolero, de Maurice Ravel, em versão da Filarmônica de Viena disponível no Youtube.

O vídeo começa com o maestro venezuelano Gustavo Dudamel guiando a orquestra. O primeiro instrumento que se ouve é um tarol, que executa dois compassos repetidos por toda a peça e que demarca o ritmo. Uma flauta transversa começa a soar, suave, e cessa para dar espaço ao clarinete e, em seguida, ao fagote. Cada instrumento é inserido com o devido espaço até que, ao final, a orquestra toque o Bolero com toda a sua potência.

A lição: não criar quebra-cabeças no começo das narrativas. “É preciso acomodar o leitor, apresentar os personagens aos poucos e deixá-lo se acostumar com as situações por que passam”, diz aos alunos.

A associação vem dos tempos de violoncelista na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre — a música clássica está presente em pelo menos cinco de seus livros. Os quinze anos de concertos podem ter lhe valido um tinnitus aurium, o zumbido permanente que sente nos ouvidos.

Hall da fama

Assis Brasil já recebeu prêmios por seus trabalhos ficcionais: foi vencedor do Machado de Assis de 2001 e do Portugal Telecom em 2004, para citar alguns. Seus Ensaios íntimos e imperfeitos, de 2008, foram qualificados por José Castello como “pequenos, mas vigorosos”. Outros títulos — a maioria deles é dedicada à temática sulina — também receberam comentários elogiosos de resenhistas como Sérgio Faraco e Tarso Genro (outrora crítico e poeta).

O escritor e cineasta Tabajara Ruas, cuja produção também é afeita à cultura gaúcha, é um entusiasta da obra do professor: “Por mais que ele seja fundamental na área de formação de escritores, nada supera a importância de sua obra literária, com força de épico e de uma poesia sutil e cerebral”. E o próprio Fischer, que celebra o papel  de Assis Brasil no “combate à mentalidade beletrista” no país, é um apreciador de sua obra. Mas pondera: “É comum que ele expresse, indireta ou mesmo diretamente, uma perspectiva que sugere que a história brasileira seja não mais que uma sombra ruim da história ocidental”, diz. “Tenho mais gosto pelos romances iniciais de sua carreira, quando o foco eram figuras desviantes.”

Mas se a fortuna crítica enaltece o escritor, a qualidade dos discípulos evidencia a fama do professor.

O curso começou a gerar interesse na década de 1990 e já passaram por sua sala mais de setecentos aspirantes a escritores, muitos publicados por importantes editoras brasileiras.

Aluno da turma de 1995, Michel Laub destaca o papel de Assis Brasil, mas, assim como Veronica Stigger, salienta que as oficinas devem ter um caráter transitório na formação de um escritor. “Assis é uma das figuras mais generosas que conheci. Isso é uma opinião majoritária entre quem cursou a oficina, então a importância do papel dele na trajetória dos escritores fica subentendida”, diz o autor de O diário da queda e Maçã envenenada. “Mas o próprio Assis estimula que a oficina seja uma etapa a ser superada.”

Daniel Galera, que frequentou o curso em 1999, destaca que ali aprendeu a ler como um escritor: “Comecei a reparar nas escolhas do autor no que diz respeito ao tipo de narrador, linguagem, tempo verbal, estrutura cronológica, articulação do subtexto”, diz ele que, aos 39 anos, é autor de cinco romances e publicado em oito países. “Fora isso, vários pequenos macetes foram valiosos. Assis é muito bom em treinar os alunos a cortar o texto. Lembro de quando ele disse que, em quase todos os casos, cortar a última frase ou mesmo o último parágrafo de um conto melhora o resultado. Desde então, verifiquei que isso é verdade.”

Em 2012, a revista britânica Granta, uma das mais importantes publicações literárias do mundo, divulgou uma edição especial selecionando os vinte melhores autores jovens brasileiros — a exemplo do que havia feito em outros países. Além de Laub e Galera, outras duas ex-alunas de Assis Brasil figuraram entre os escolhidos: Carol Bensimon e Luisa Geisler.

O manual

Em Escrever ficção, Assis Brasil reproduz, com naturais adaptações, o conteúdo de suas aulas. Dividido em nove capítulos e se valendo de um interlocutor fictício como subterfúgio — um aluno que personifica as inseguranças de jovens escritores —, o livro é recheado de referências e se detém em aspectos estruturais como tempo, espaço, focalização e estilo, sempre a partir de exemplos. Pode tanto ser lido como manual para a produção de uma narrativa longa quanto como um livro sobre a escrita ficcional e os grandes romances da história — Madame BovaryMemórias póstumas de Brás CubasOs irmãos Karamázov. Praticamente não há menções a teóricos: é a perspectiva de um ficcionista transmitida a outro ficcionista.

“Se um poeta necessita de muita sensibilidade, muita leitura, muita sinceridade, o ficcionista necessita disso, e mais: muita vivência.”

Para isso, é necessário ter curiosidade — à beira da indiscrição — sobre qualquer assunto. Resgata um episódio da própria vida: aos dezoito anos, num acampamento, um colega de barraca, estudante de biologia, lia artigos sobre genética. Assis encheu-o de perguntas sobre o tema e, posteriormente, conheceu o laboratório em que trabalhava. Trinta anos depois, criou um personagem geneticista que dava expediente naquele mesmo local.

A vivência norteia não só a ficção de Assis Brasil, mas também o que se pode chamar de sua teoria. É o que dá para inferir da dedicatória de Escrever ficção, destinada a seus alunos: “De mim, se ficar alguma coisa, vai ser meu trabalho de professor. Disso eu tenho plena consciência”.