Por favor, diga Bun Di

revista Piauí
edição 79
abril de 2013

Quando entrou na loja de agasalhos naquela manhã de fevereiro, Agatha Wyss arriscou um bun di. Como seu interlocutor respondeu à saudação em sua língua materna, Agatha ou Aghi, como é conhecida – não se conteve. Jau dovrel ina chapitscha, emendou, anunciando sua intenção de levar um gorro, apesar da pilha de peças iguais que já possuía em casa. Queria retribuir a habilidade do vendedor de se expressar em seu idioma. Nas ocasiões em que seu bun di é rebatido com um Guten Tag, ela fala em alemão mesmo, visivelmente decepcionada.

Jovem senhora de jeito acolhedor e olhos azuis cristalinos, Aghi é uma insistente militante pela sobrevivência do romanche, o idioma legado pelos romanos em sua passagem pelos Alpes suíços rumo à conquista de terras bárbaras, por volta do século V. Apesar de ser a quarta língua oficial da Suíça, seu futuro está longe de ser garantido – é falada atualmente por cerca de 60 mil pessoas.

Em Champfer, a vila de 900 habitantes onde Aghi nasceu e mora até hoje, o estudo do romanche é obrigatório até a 4ª série. Ela própria dá aulas do idioma numa escola primária de Silvaplana, outro vilarejo da região alpina de Engadina que tem o romanche como primeira língua. Para seu desespero, no entanto, o número de povoados onde o romanche faz parte do currículo das crianças diminui a cada ano. Aghi acredita que, com o aumento de turistas em St. Moritz a principal cidade da região e uma das mais badaladas estações de esportes de inverno , o aprendizado do idioma perdeu atratividade em comparação com aqueles usados na interação com os estrangeiros, como o inglês.

Ainda assim, o romanche resiste nas áreas turísticas, em nomes de pistas de esqui, ruas e restaurantes. Lá, cume é piz, casa é chesa, cozinha é chadafö. A manhã é la damaun e o pão com manteiga é paun cun painch. O pot-pourri de referências latinas tem pronúncia próxima à do italiano.

O romanche, porém, se distancia do italiano e também do espanhol, francês e português – por ser do ramo reto-romano (como o ladino e o friulano falados nas montanhas italianas). Para complicar ainda mais sua difusão, ele tem cinco variações parecidíssimas, embora unificadas oficialmente em 1982 numa única língua escrita, o Rumantsch Grischun. Não fosse essa unificação, vegn, veintg, vantg ou vainch poderiam ser opções de grafia a constar na nota de 20 francos suíços, onde se lê vengt.

Reconhecido como idioma oficial em 1938, foi apenas em 1976 que o romanche passou a constar nas cédulas da Suíça, junto com o alemão, o francês e o italiano, e somente em 2001 começou a ser usado formalmente nos órgãos públicos. Conquistas tardias e árduas comemoradas por Aghi, para quem a língua é uma expressão da identidade de quem vive naquelas paragens alpinas e uma mascote de seu país. Nosso idioma ajudou a reforçar o patriotismo de uma Suíça que lutava para se livrar da influência alemã às vésperas da guerra, orgulha-se.

Além de um canal de tevê em romanche, que produz uma hora e meia de conteúdo por semana, há também um jornal publicado de segunda a sexta apenas no idioma montanhês, o La Quotidiana. O principal periódico da região, o Engadiner Post, dedica duas páginas diárias a manchetes como Per ina politica federalistica” e “Fatg tscheiver da camifo!” – “Um Carnaval como deve ser!”.

A língua, entretanto, anda com o prestígio em baixa na biblioteca de St. Moritz onde, no fim da tarde de uma sexta-feira invernosa, não havia vivalma além da diretora, Silvia Bezzola. Livros em alemão e francês predominavam, dispostos nas estantes de maior destaque. Uma tímida seção guardava as joias da produção literária romanche, de autores como Leta Semadeni, Oscar Peer, Peider Landsel, Cla Biert e Rut Plouda. Semadeni, expoente dos escritores locais, ganhou prêmios literários na Suíça e na Alemanha, ambos em 2011, pelo livro de poesia In Mia Vita da Vuolp [Em Minha Vida como Raposa]. A obra-prima, uma pena, não consta no site da Amazon.

Com exceção do Tractat Davart lOrigin e las Basas da lInegualitad Tranter ils Umans, o célebre tratado do suíço Jean-Jacques Rousseau, havia na biblioteca poucas traduções de obras clássicas para o romanche. Silvia, a diretora, pareceu conformada com o destino da língua, uma vez que dominá-la não apresenta nenhuma vantagem econômica. Aghi, por sua vez, não perde a esperança: Acredito que o romanche sobreviverá porque é a língua que remete ao gosto de comida caseira, à infância e à família.

Para perpetuar o romanche ao menos em casa, Aghi sempre se preocupou em fazer da língua em que sonha a primeira de seus três filhos. Foi assim que Andrea Wyss, o primogênito, aprendeu o dialeto das montanhas, expressão considerada pejorativa pelos cultores do romanche. Bianco, como Andrea é chamado, é esquiador profissional e professor do esporte no inverno. Conversa com os clientes em alemão, inglês, francês e italiano. Na baixa temporada, se emprega como confeiteiro e pizzaiolo, além de outros bicos.

Os esforços de Aghi em salvar o romanche são louváveis, mas nem sempre frutíferos. Na manhã em que comprou o gorro, os três clientes seguintes na loja de agasalhos dialogaram com o vendedor em suíço-alemão, emitindo o mesmo som que predomina nos cafés e bares de St. Moritz. Nem em casa, na verdade, Aghi consegue fazer milagre. Questionado sobre os escritores que mais lê, Bianco coçou a cabeça e hesitou por um instante. Por fim, respondeu: A única coisa que leio é a Playboy, e de preferência não a suíça!”.