Uma etapa em minha vida

site da editora Guarda-Chuva
abril de 2018

Não que eu seja uma ciclista profissional, mas diferentemente do André Agassi, que na primeira frase de sua biografia afirma que odeia jogar tênis, eu amo andar de bicicleta. Faz uns três anos que comecei a pedalar de verdade, com sapatilha que combina com a bicicleta (ciclista tem essas manias) e toda a parafernalha.

Vou ora por vias íngremes que desembocam em floresta, ora por rotas que vão de encontro ao mar. Mas também percorro caminhos que não levam a canto algum. Sinto-me meio máquina quando coloco a estrutura de duas rodas em movimento: minha força é motor e minha atenção, equilíbrio.

Numa onda de entusiasmo, ano passado me inscrevi para participar do L’Étape du Tour, uma prova criada em 1993 para que amadores pudessem experimentar um dia do Tour de France, uma das mais tradicionais competições de ciclismo do mundo, com mais de 110 anos de existência. O L’Étape du Tour acontece em vários países e esteve no Brasil pela primeira vez ano passado, em Cunha, São Paulo. O evento foi tão elogiado que hoje faz parte do calendário ciclístico mundial.

Com minhas poucas, porém suficientes, quilometragem e experiência, imaginei que a competição seria apenas difícil. A ideia era treinar, fazer o reconhecimento do perímetro, simular pedaladas semelhantes. Mas, além da farra das Olimpíadas, algum diabinho se sentou ao pé do meu ouvido e ficou semeando preguiça, boemia e desordem. E os quilômetros de agosto e setembro se passaram quase em branco. Mas não ia desistir.

Foram 5:52 horas passadas sobre a bicicleta e que entraram no rol das minhas lembranças mais extenuantes. Tanto tempo que deixou a indelével marca de queimado de short nas pernas. Afinal, nas últimas 2 horas de prova fazia 37 graus.

Vi bêbado oferecendo churrasquinho e cerveja no início da manhã e ouvi gritos de espectadores que me confundiram com gente famosa. Vi homens empurrando bicicletas em subidas em que ainda me mantinha firme e forte. Alguns desistiram, outros estavam sentados no meio do asfalto com o rosto cheio de sangue das quedas em descidas perigosas. Cruzei com amigos que me injetavam disposição quando passavam por mim na torcida e fiz outros pelo caminho.

Tenho certeza de que a cidade de Cunha nunca mais será a mesma depois do L’Étape: ciclistas vindos de todos os cantos do Brasil (alguns, do mundo) com seus gadgets néon, um léxico próprio e marmitas com batata doce fechando todas as ruas principais da cidade. Além disso, o percurso era desumano: 112km de distância com 2800m de diferença de altura – isso significa intermináveis subidas e descidas por todas aquelas serras que protegem Cunha das cidades vizinhas, como Paraty e Aparecida. Era uma prova para separar homens e mulheres de meninos e meninas.

O que nos leva a sair da cama às 5 da manhã pra pedalar? O que nos move para seguir girando os pedais por quilômetros a fio ou em ziguezagues em direção ao céu? Curvada sobre minha bicicleta, só posso me concentrar no exato momento do meu voo: estou arrancada da continuidade do tempo, agarrada a um fragmento retirado tanto do passado como do futuro. Estou avessa a tudo que sou, tudo que fui e tudo que serei. Por isso não tenho medo.

Toda água que encharcou meu corpo nas 5:52 horas prova, a devolvo em lágrimas no cruzar da linha de chegada. As pernas ardiam. O coração também.