Doze poemas na Ruído Manifesto

Ruído Manifesto
05.06.2019

“Cartomante”, “Compro”, “Vendo”, “Improviso” e “Anfíbio” integram o livro Lágrimas não caem no espaço; “Título”, “Acervo afetivo”, “Distância”, “Calma” e “Fome” estão contidos em Microscópio; “Berlim” foi publicado na Revista Época em outubro de 2018; “15A” saiu na edição de outubro do Cândido, Jornal da Biblioteca Pública do Paraná, em 2018.

***

CARTOMANTE

tomar decisões

é a melhor forma

de prever o futuro

 

*

 

COMPRO

1. tempo

2. malas feitas

3. remédio para dores que ainda não vieram

4. apagador de memórias ruins

5. virgindades perdidas

6. secador de lágrimas

7. sinal verde

8. paliativo para tristezas da alma

9. fotografia que se mexa

10. máquina de gravar sonhos

11. decodificador de pensamentos

12. hd de memória interna

 

*

 

VENDO

1. dores antigas

2. quase mortes

3. falsas epifanias

4. medo de escuro

5. medo do fim do amor

6. sorte no jogo

7. sustos

8. panturrilhas inchadas

9. ressacas

10. azias

11. unhas quebradas

12. cacos

 

*

 

IMPROVISO

toda noite o avô tira

a avó para dançar

qualquer música

que toque no rádio

os anos denunciam sua passagem nos

raros boleros e valsas enquanto

improvisa passos

não mais como o menino inexperiente

prestes a deitar-se com uma mulher pela primeira vez

mas como anda no quarto

escuro depois

dos olhos terem se acostumado aos vultos

a atração

às quinas superada depois

dos mindinhos quebrados

as canelas

roxas rochas

sucumbem em areia

por milhões de anos o corpo

envelhece antes

sempre antes do tempo

 

*

 

ANFÍBIO

procurar o tempo

perdido

no trânsito das cinco da tarde

o juízo

o prendedor de cabelo

o caminho

a trilha

que você deixa

vermelha

no meu pescoço quando sente saudade

como quem percorre um país inteiro

para chegar no

terço que sobra da cama

seu peito é um ovo

branco e sem pelos o mamilo

pequeno como uma criança perdida na multidão

de uma capital europeia em julho

edredons fundos como lábios

portões

seria enlouquecedor abrir as trancas

dos seus pensamentos quando

 

olha

 

para mim como se eu fosse um réptil grande e perigoso

 

*

 

TÍTULO

se há órfão e viúvo

como chamar aquele que perde

um filho?

 

*

ACERVO AFETIVO

fechado para visitas

 

*

DISTÂNCIA

o que nos separa de um estranho é um sorriso

 

*

 

CALMA

como a piscina depois do mergulho

não como o mar antes da onda

 

*

 

FOME

se esconder do amor como

escondemos o rosto no cardápio

antes de matar a fome

 

*

 

BERLIM

Como são as primeiras horas após

a morte de alguém

a construção de um muro cortando um país inteiro

o fim de uma guerra

de um relacionamento

da apuração de uma eleição?

 

Eu gostaria muito

que não tivéssemos como nos desentender

se sonhamos na mesma língua

e ouvimos samba em fevereiro.

 

Será que as palavras ficaram daltônicas?

Você surdo

eu muda?

 

Penso que se morássemos em Berlim

provavelmente teríamos ficado de lados opostos.

O céu, o mesmo

nós, tão outros.

 

Se as palavras têm mais de um sentido

a manga está azeda

a manga precisa ser passada

talvez você escute

de outra forma o que digo

e eu diga de outra forma

o que você escuta.

 

A palavra é à queima-roupa,

o nocaute a facada

os golpes

podem vir a qualquer momento

de qualquer lugar.

 

Nosso passado é museu incendiado.

País de

puxadinho

jeitinho

deixa que eu deixo

ratos

malas

cuecas cheias de dinheiro

to mandando o Bessias

só usa em caso de necessidade

tem que manter isso aí

com o Supremo, com tudo

rouba, mas faz

ninguém sabia de nada, mas

todo mundo sabe o que acontece

todo mundo sabe o que pode acontecer.

 

Não vou me acostumar nunca.

Alguém está prestes a arrancar a última flor,

mas as crianças já foram dormir.

 

*

 

15A

o mundo parece mais bem organizado

de cima

um homem bonito

de longe