Literaturas de (ou para) existência

Publishnews
05.11.2018

Entre leituras de viagem, a correria cotidiana e pescarias no lago da memória, tento olhar o futuro enevoado. No tempo comprimido, as ideias nos chegam rápido, em camadas sobrepostas, numa megacebola cujo maior desafio é tentar tirar sentido de cada etapa antes que ela seja obliterada – com ou sem choro. Tempus fudit, camaradas!

Entre o transe e o trânsito, enumero a seguir um rol de gaguejos, pitacos, potocas whatsáppicas, instantâneos que ficam na peneira das ideias nesses dias de tantas curvas.

Trânsito: acompanhando um projeto voltado para a cultura geek em Goiânia, aprendo com adolescentes, em meio à profusão de cores, sons, cosplayers e uma avalanche de signos lúdicos e estéticos, que os dragões são símbolos representativos dos medos mais primitivos dos mamíferos: répteis e fogo. Por isso queremos dominá-los, pois assim teríamos acesso ao tesouro guardado, que somos nós mesmos. Fui ao “Dicionário de símbolos” e não havia essa referência específica, mas prefiro acreditar nos nossos jovens.

Eleições: parafraseando Cazuza, eu vejo uma grande novidade… de museus. Fui votar na escola de sempre, dei um livro para uma senhora que orientava as pessoas sobre zonas e seções, e ganhei uma aula. Professora de história, Maria das Graças me explicou: “a minha geração e a seguinte não transmitiram bem o valor da democracia e o perigo do autoritarismo. Daí esse novo ciclo, que é do mundo, não só nosso. Mas vamos sobreviver.” Ficamos em silêncio. “A gente sempre sobrevive”, concluiu a professora.

Trânsito: converso com alunos de Letras em Minas Gerais. Na hora das perguntas, uma jovem empreendedora da área de edição pede dicas profissionais sobre assessoramento de novos autores. Vem muita coisa, me lembro rapidamente de alguns casos de sucesso – e muitos de insucesso –, respondo com o receio que sempre tenho de dar uma suposta receita fácil, pois nessa área tudo é incerto e movediço: tudo se desloca, muitos afundam. De todos os ecossistemas, o mais parecido com o meio literário e editorial é o mangue.

Leitura: o Marcelino Freire, que na verdade são pelo menos meia dúzia, porque é possível encontrá-lo em dois eventos literários simultaneamente, sempre com a mesma desenvoltura, escreve no seu livro Bagageiro: “Na literatura tudo se perde. Por isso se transforma”. Eis uma grande dica profissional. Marcelino, esse caranguejo arretado.

Trânsito: viagem a Portugal e reunião de trabalho na Fundação José Saramago. Ao fim, surge Pilar del Río, como um dínamo. Pega um cartaz onde está escrito #elenão #elenunca. Esperamos que seja ainda possível ler o Ensaio sobre a cegueira, um dos meus livros preferidos, sem interferência alguma. Quem procura ideologia marxista em literatura geralmente não entende muito do que seja literatura, marxismo ou mesmo ideologia. #saramagosim

Leitura: “O que nos separa de um estranho é um sorriso”, diz a poeta Luiza Mussnich no seu pequeno e explosivo livro Microscópio. O sorriso vem do sub-riso, uma forma mais comportada do riso medieval. Mas com o tempo adquiriu a ternura necessária como ponte para o outro. Porque agora é preciso rir e sorrir, sobretudo.

Trânsito: em dinâmica com bibliotecárias e agentes culturais no Piauí, trabalhamos técnicas de criação de textos literários, e aprendo muito ouvindo relatos simples e poderosos de leituras e escritas. A biblioteca é o espaço mais dinâmico de todos os equipamentos culturais, porque é no silêncio da cuca, esse imenso palco invisível, onde a arte literária se apresenta. Todo bairro do país deveria ter uma biblioteca com seus silêncios povoados.

Memória: gravo depoimento para um documentário na Uerj, onde estudei Letras. Volto ao tempo em que acessar a universidade era um sonho ainda distante para quem fosse pobre. Foi na concha acústica, agora batizada de Marielle Franco, mesmo lugar onde assisti ao Fidel Castro discursando – acho que ele usava um tênis Nike, e na época fiz algum trocadilho sobre reformas de base. É na universidade pública onde muitos reaprendem a ler e escrever. Comigo foi.

Eleições: somos convidados a escrever um conto ou poema para a revista Época, com o tema das eleições. Lembro-me do Millôr, cuja lucidez faz tanta falta hoje, e escrevo algo parafraseando o Guru do Meyer. “O humor é a vitória de quem não quer competir”, dizia ele. E como humor é água, talvez seja a melhor forma de dissolver esses arremedos de anos de chumbo que se avizinham.

Trânsito e leitura: nesta semana são lançados os dois livros vencedores do Prêmio Sesc, que é voltado para inéditos. Todos os anos tento lê-los como alegorias, entender como essas obras decifram algo que urge e ruge da nossa literatura. Ano passado olhei para trás com Última Hora, sobre o jornalismo em meados do século XX, e conheci mais a Amazônia com O abridor de letras. Agora nascem As coisas, que trata do afeto perdido e buscado no automatismo dos dias, e Entre as mãos, sobre se reconstruir como pessoa, texto e tecido. Livros para existir agora.

Porque agora é, afinal de contas, o único tempo para se existir.

Henrique Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro, em 1975. É formado em Letras pela Uerj, com especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestre e doutor em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ e coordenador pedagógico do programa Oi Kabum!. Trabalha na gestão de projetos literários no Sesc Nacional. É autor de 13 livros, entre poesia, infantis, juvenis e o romance O próximo da fila (Record), publicado também na França.