O cotidiano como uma lupa – entrevista por Paula Gicovate

Deriva
junho 2022

Luiza Mussnich é uma grande poeta, escritora de força enorme, e, por sorte minha, uma amiga-irmã, escorpiana de humor incrível. Ela rouba as batatas-fritas deixadas pela mesa ao lado e tira da manga uma pintora talentosa que eu nunca tinha ouvido falar com a maior naturalidade. Ela transita. Pela cidade, histórias, arte, amigos, lugares. E mantém seus olhos de escorpiana bem abertos para que nada escape.

Justamente por isso, emociona profundamente. Sempre digo que o que mais me toca na sua poesia é que ela parece ver o mundo, o cotidiano, às vezes, a mais banal das coisas, com uma lupa. Luíza está além, mostra o que não sabíamos, mas precisávamos descobrir através da sua sensibilidade: a batata-frita da mesa ao lado, o coração das mulheres na guerra, os olhos do homem amado, o cachorro que ladra, o urinol.

Nada passa despercebido, nada passa sem algo de mágico, tudo permanece através de suas mãos. Seu Tudo coisa da nossa cabeça (7Letras) é mais um belo exemplo de seu olhar, e do quanto estamos cercados por paraísos e agonias que Luiza nomeia como ninguém.

Paula Gicovate — Eu sempre digo que sua poesia é uma lente de aumento, mostra a beleza e a agonia do cotidiano. Fico impressionada com a sua capacidade de perceber tantos sentimentos, camadas, objetos, e me traz muita curiosidade de saber, como foi a Luiza criança?

Luiza Mussnich — A Luiza criança andava sempre com a franjinha colada na testa, ofegante, olhos bem abertos, flertando com o perigo, tagarela, perguntadora…  Logo que aprendi a ler e escrever, comecei a inventar histórias de aventuras. Aos onze, incentivada pelos meus pais, publiquei – de forma bem caseira –, a de Helena, uma mocinha corajosa que quer desvendar o assassinato do irmão, numa atmosfera de mistério e surrealismo. Depois a escrita foi ficando menos fantástica: cartinhas, letras de música rimadas, textos em prosa poética. Até eu chegar à poesia, esse caminho sem volta. E que, pensando bem, continua no plano da fantasia.

Paula Gicovate — Você se lembra do primeiro poema que leu? O momento do assombro, do encontro.

Luiza Mussnich — Talvez eu tenha lido outro, mas o primeiro poema que ficou na minha cabeça e eu entendi como uma escrita que continha algum tipo de mágica — penso que essa capacidade de deixar as palavras e ideias “brilhando” na mente é peculiaridade da poesia — foi o clássico “Ou isto ou aquilo”, da Cecília Meireles. Um poema sobre escolhas, sobre não poder ter duas coisas ao mesmo tempo, “estar ao mesmo tempo em dois lugares”.  Conscientemente ou não, meu poema mais conhecido, “cartomante”, fala justamente sobre isso: “tomar decisões/ é a melhor forma/ de prever o futuro”.

Paula Gicovate — Escrever poesia foi uma escolha?

Luiza Mussnich — Escrever nunca é uma escolha. É quase uma convocação. Todo mundo escreve ou pode escrever, sim, mas há pessoas que sufocam, padecem, se não escrevem. Então, para mim, escrever não foi uma escolha, foi um chamado. E eu adoro o formato poesia, aquele que mais tenho explorado, por conta das possibilidades que ele oferece. Toda a liberdade que não cabe na vida encontra espaço na poesia.

Tenho me aventurado pela prosa também. Vamos ver no que vai dar…

Paula Gicovate — O que te desperta a escrita? Existe algo sobre o que você não consiga escrever?

Luiza Mussnich — Qualquer coisa — olha ela aí de novo! — pode funcionar como gatilho para escrita: algum trecho de livro que eu esteja lendo, o entreouvido de uma conversa, uma visita a uma exposição de arte, uma paisagem, uma expressão no rosto do meu filho, uma emoção reprimida, uma dor, uma angústia… Para escrever é essencial que haja um “quiçá” ou um “oxalá”.

A gente costuma escrever sobre aquilo que nos diz respeito, ou interessa, ou intriga. Não me ocorre nenhum assunto sobre o qual eu não conseguiria escrever — dizem que os escorpianos gostam de ir — e vão — ali aonde ninguém se arrisca (por ser perigoso, tortuoso, doloroso, desagradável). E talvez seja verdade.

Paula Gicovate — Em 2021, você teve um filho. Algo mudou no seu olhar depois desse acontecimento? 

Luiza Mussnich — A chegada do João mudou muita coisa. Sobretudo minha relação com o tempo. Sua passagem, seu valor. O tempo e a memória são assuntos muito caros para mim. Comecei a escrever cartas para o João para eu me lembrar de como ele era naquele período, de como éramos enquanto mãe e filho, do que marcou nossa existência quase simbiótica nesse início. Porque eu tendo a esquecer. E sei que por mais marcante que seja esse início de vida para ele, ele não vai reter nenhum desses acontecimentos.

Mas o que talvez a presença do meu filho traga muito em evidência nesse momento, influenciando meu olhar, seja a consciência das primeiras e últimas vezes. A primeira risada, o primeiro espanto, o primeiro encantamento, a primeira vez que se virou no berço ou que segurou algo com firmeza. A última vez que usou uma roupinha tal, que dormiu no ninho, que cabia numa almofadinha. Seus pequenos passos em direção à uma vida própria.  São conquistas e despedidas esdrúxulas, mas tudo é magnânimo na vida de um bebê e de uma mãe recém-nascidos.

Paula Gicovate — Me fala do processo do Tudo coisa da nossa cabeça? Qual foi o primeiro poema? Como você decidiu seguir fazendo esse inventário sentimental?

Luiza Mussnich — Originalmente, o Tudo coisa da nossa cabeça era uma série dentro de um livro maior no qual estou trabalhando. Mas comecei a achar que enquanto projeto, ele merecia uma atenção especial. Ele fez parte de toda uma elaboração minha sobre a “coisa” e seu uso na literatura e demais campos do saber.

Adoro fazer listas que elaborem questões subjetivas do ser, desierarquizando importâncias e pesos dos atributos das minhas enumerações. Não me lembro qual foi o primeiro poema. Acho que surgiram juntos, pelo menos enquanto ideias, títulos. Primeiro como antíteses: “coisas fáceis de conseguir” e “coisas difíceis de conseguir”, por exemplo, depois como coisas únicas: “coisas que eu perguntaria a você se tivesse coragem”.

Transformar a série em livro foi “uma brincadeira e foi crescendo, crescendo me absorvendo” (risos), como canta o Caetano Veloso. Quando vi, tinha um conjunto de 29 listas-poéticas. E gostei do fato de ser um número primo de poemas.

Paula Gicovate — Quem são seus autores-guia? Para onde você vai quando quer ler algo que te traga de volta?

Luiza Mussnich — Quando preciso ir para um “estado de escrita”, vou ler. A Wislawa Szymborska é uma das minhas “formas de voltar pra casa”, citando o Alejandro Zambra, outro autor que aprecio muito e que me mostra como a literatura é o único caminho possível.

Emily Dickinson, Anne Sexton, Carlos Drummond de Andrade, Adília Lopes, Ana Martins Marques e Sei Shônagon são poetas a que volto sempre.

Mas uma poeta não precisa ler somente poesia. Pelo contrário… Encontro muitas fagulhas para escrita lendo ensaios, entrevistas, romances. E mesmo o noticiário. Natália Ginzburg, Marguerite Duras e Clarice Lispector são uma referência em prosa pra mim. Susan Sontag também é uma referência: seja por seus ensaios, seja por sua vida de trânsito e experimentações.

Paula Gicovate — Quais coisas não saem da sua cabeça?

Luiza Mussnich — Eu, que costumo ter coisas divertidas e sarcásticas na cabeça, não consigo pensar em outra coisa que não na nossa miséria humana nesse momento.

Não dá nem tempo de se enlutar por uma tragédia, que uma nova se sobrepõe à atual. Não consigo deixar de pensar na minha avó com essa Guerra da Ucrânia: ela fez o mesmo movimento dessas milhões de pessoas na época da Segunda Guerra e chegou como refugiada no Brasil.

Também não consigo deixar de pensar nas mulheres no Afeganistão retomado pelo Talibã.

Nem nos países africanos ignorados pelo resto do mundo e com cobertura vacinal baixíssima.

Nem na crise climática.

Nem nos danos irreversíveis que o Bolsonaro está causando ao nosso país: no meio ambiente, no crescimento da intolerância com a alteridade, no retrocesso das pautas progressistas, no aumento da desigualdade social, dentre tantas outras mazelas.

Paula Gicovate — Me indica um poema de amor?

Luiza Mussnich — Só um? Talvez o tema das escolhas vá me acompanhar por toda vida. Minha analista ficaria orgulhosa dessa tomada de consciência (risos).

Mas, hoje, te indico esse, da uruguaia Cristina Peri Rossi, que conheci recentemente:

Oração

Livrai-nos, Senhor,

de encontrarmos,

anos depois,

com nossos grandes amores.