Poema “Berlim” na Revista Época

Época
29.10.2018

Desde Eduardo Cunha na cadeia escrevendo cartas a Michel Temer, passando por uma partida de golfe entre Donald Trump e Jair Bolsonaro, as ficções a seguir foram escritas por alguns dos melhores nomes da literatura brasileira contemporânea.

Os 21 textos e dois cartuns aqui reunidos trazem em si as inquietações de nomes que imaginaram os cenários mais plurais possíveis – Cabo Daciolo no Planeta dos Macacos, o hipotético filho bastardo de um político folclórico, uma vendedora de papel higiênico em meio às manifestações. Nestes contos, veteranos premiados como Ricardo Lísias e Marcelo Moutinho se unem a novos (Luisa Geisler, Emilio Fraia) e novíssimos (Juliana Leite, Gustavo Pacheco) para traçar um poderoso painel do Brasil no momento em que a realidade pareceu superar de vez a ficção.

Apostando no poder das palavras diante de tanto ruído, ÉPOCA entrega ao leitor uma renovação na crença em nossos agentes culturais, provando que difíceis são os tempos, nunca a literatura.

Berlim
Como são as primeiras horas após
a morte de alguém
a construção de um muro cortando um país inteiro
o fim de uma guerra
de um relacionamento
da apuração de uma eleição?

Eu gostaria muito
que não tivéssemos como nos desentender
se sonhamos na mesma língua
e ouvimos samba em fevereiro.

Será que as palavras ficaram daltônicas?
Você surdo
eu muda?

Penso que se morássemos em Berlim
provavelmente teríamos ficado de lados opostos.
O céu, o mesmo
nós, tão outros.

Se as palavras têm mais de um sentido
a manga está azeda
a manga precisa ser passada
talvez você escute
de outra forma o que digo
e eu diga de outra forma
o que você escuta.

A palavra é à queima-roupa,
o nocaute a facada
os golpes
podem vir a qualquer momento
de qualquer lugar.

Nosso passado é museu incendiado.
País de
puxadinho
jeitinho
deixa que eu deixo
ratos
malas
cuecas cheias de dinheiro
to mandando o Bessias
só usa em caso de necessidade
tem que manter isso aí
com o Supremo, com tudo
rouba, mas faz
ninguém sabia de nada, mas
todo mundo sabe o que acontece
todo mundo sabe o que pode acontecer.

Não vou me acostumar nunca.
Alguém está prestes a arrancar a última flor,
mas as crianças já foram dormir.