POEMAS inéditos – Luiza Mussnich

Jornal Cândido
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sinais
o nervosismo mastiga as unhas
o frio eriça os pelos do braço
a vergonha tem bochechas vermelhas
o tesão faz despencarem cataratas, ergue monumentos
a fome devora o bom humor
a tristeza mingua
o prazer aperta os olhos
a sedução mordisca os lábios
a felicidade inventa dentes pelo rosto
a ansiedade umedece mãos
o sono escancara a boca
a raiva dói nos nós dos dedos
apocalipse
se o mundo acabar amanhã
sobram baratas
assentos do meio
jujubas laranjas
poemas
pizzas de aliche
tamanhos pp
carros brancos
milhares de galáxias intactas
o amor
rosto
se você fechar os olhos agora
talvez não se lembre da mulher
“bonita"
com quem cruzou na esquina
suas feições desapareceriam
no sono perdido da madrugada
por mais pesados que fossem os cabelos
por mais ritmado o balanço do corpo desafiando
a gravidade nos passos firmes

se você fechar os olhos agora
é mais provável que consiga lembrar
do motivo da risada, do arrepio, do toque, do entusiasmo das palavras, da conexão cerebral
esses atravessamentos
provocados por outra pessoa
a sensação é invisível e talvez por isso se fixe
para além
a imagem escapa como o cão amedrontado
a ideia não anotada
sobreposta por outra
o batom que extrapola os contornos da boca
quando se deveria prestar mais atenção
às palavras que profere

você não gostaria de colecionar álbuns
de sensações?
um arquivo de como determinadas pessoas te fizeram sentir
e voltar a elas de tempos em tempos
por mais que não possa
lembrar das listras na íris, da amplitude dos braços quando dançam, do abaulado na base do
pescoço por mais
que a memória não tenha rosto
pluma
escrevo esse poema no centésimo sexto dia sem te ver
começo a esquecer sua voz
a memória precisaria de fotografias
para recriar sua imagem
você já prestou atenção
que lembrar é de certa forma aproximar
do esquecimento?
lembrar é tornar algo cada vez mais
distante do real

depois de vividas
as lembranças vão para o lóbulo pré-frontal
depois para o hipocampo
uma área mais profunda do cérebro
mais longe de todos aqueles agoras

volto aos acontecimentos
como regatasse um náufrago
como se eu pudesse te salvar
estico os braços
quase te encosto apesar da distância
o desejo nos faria levitar
se essas coisas existissem

você me acorda de madrugada
não porque dorme ao lado
não sei sequer se dorme
se pensa em mim ao menos
ao mesmo tempo em que penso em você
isso poderia ser o diálogo de um filme
assim poderíamos desinventar esse pensamento
que não ocupa espaço algum
esse pensamento pluma
com força para erguer um monumento
um móbile do Calder orbitando sobre nossas cabeças

Luiza Mussnich é escritora e jornalista. Nasceu em 1991, no Rio de Janeiro. É autora dos livros Microscópio (2017), Lágrimas Não Caem no Espaço (2018) e o recém-lançado Tudo Coisa da Nossa Cabeça, todos editados pela 7Letras.