Poemas na Deriva

Deriva
5a edição
casa
mal dormi nas últimas noites
andei tendo pesadelos
minha mãe me diz ao telefone
sonhei que você tinha morrido
sonhei duas noites seguidas
que você tinha morrido
ela diz depois da minha insistência

é estranho estar na mesma cidade
no mesmo bairro que ela
mas tão longe
a saudade essa métrica
imprecisa para distâncias

minha mãe está do outro lado
da linha telefônica
quase outro continente
embora estejamos no mesmo lugar
casa
e eu me sinta cada vez mais estrangeira
em qualquer canto do mundo

cataratas
minha avó diz que não sabe se vai sobreviver
logo ela que está acostumada a cruzar fronteiras
não percorrer alguns poucos metros quadrados
logo ela que está acostumada a perder
os amigos
de vista

ela ainda pode ver o céu
enxergar o mar da varanda
ela tinge os olhos de oceano
de cataratas, as lágrimas
a cegam por instantes
está cansada de fugir
do silêncio que pode ser rompido a qualquer momento
por uma bomba trovoando no céu
em silêncio morreram
seis milhões de judeus nos campos de concentração
as ausências estão cheias de silêncio
tudo parece calmo

o amor também acaba assim
matagais
do Pacífico ela diz que é verdade
estamos em guerra os países
não podem enterrar seus mortos
que se empilham
feito roupas sujas
na Itália os varais estão vazios
roupas cheias de sangue
matagais brotando nos jardins
estou muito cansada para o perigo
muito jovem para a morte
e você talvez preferisse que eu falasse de outra coisa
linhas mais alegres
você preferiria que eu falasse sobre amor, talvez

talvez o amor
esse adiamento contínuo
tartaruga sem destino caminhando pelo jardim desabitado
Matusalém
Sabia que há apenas seis litros de sangue dentro do corpo humano?
E que existe um nome específico no universo
do vinho para o tamanho de garrafa que comporta essa quantidade:
Matusalém, como o do homem mais longevo da bíblia, que teria vivido novecentos e sessenta e nove anos.

Mas nada disso faz diferença agora
diante de um homem estendido no chão
que há pouco menos de uma hora
deixou de fazer sinapses
sístoles e diástoles
e perde calor para sempre.

Um corpo ainda com seus duzentos e seis ossos intactos
seus trinta e dois dentes da boca prontos para triturar um pedaço de carne
seu metro e noventa e seis de altura desperdiçado sobre o tapete
as duas abotoaduras da camisa prendendo punhos silentes
os sapatos que só andam em par
mesmo quando não
vão mais a canto algum.

Luiza Mussnich é autora dos livros de poesia Microscópio, Lágrimas não caem no espaço e Para quando faltarem palavras, todos pela Editora 7Letras.