Ucranianas

Crônica
julho de 2016

Minha avó nasceu na Ucrânia em 1938. Mas ela teve que deixar tudo para trás por causa da guerra e suas consequências: meu bisavô, como tantos outros, era perseguido de Stálin. Para trás ficaram as bonecas e tudo que caracterizava a vida da minha avó — paisagens, cheiros,  comidas e hábitos. Uma infância interrompida e para sempre perdida. Ela chegou ao Brasil com uma mão na frente e outra atrás, a barreira de uma língua nova e estranha, os documentos queimados e a cidadania perdida. Minha avó nunca mais foi ucraniana. Nem a mesma.

Histórias como a de minha avó e de tantas outras avós e avôs ajudam a montar a história do século XX. Mas como ter acesso a tantos relatos? Os jornais e livros factuais muitas vezes ficam apenas no geral e supérfluo desses grandes acontecimentos. O relato das pessoas é tão mais forte que isso! As tragédias têm muitos nomes e sobrenomes.

É exatamente assim que pensa Svetlana Aleksiévitch. Ucraniana que nem minha avó, Svetlana tomou para si a tarefa de reconstruir esses acontecimentos através da vida cotidiana da alma. A “mulher ouvido”, como se autodenomina, tem como missão “achar um ser humano dentro do ser humano” e dar rostos às guerras e manchas na história.

Justamente por dar voz às experiências individuais numa colagem de relatos e, a partir da realidade, criar “romances documentais”, Svetlana recebeu em 2015 o Prêmio Nobel de Literatura.

É possível encontrar dois de seus livros em português: “As vozes de Tchernóbil, publicado em abril deste ano” e “A guerra não tem rosto de mulher”, lançado em junho.

Como saber, por exemplo, que os bombeiros que apagaram o incêndio em Tchernóbil morreram 15 dias depois da explosão, as vísceras desfalecendo? Ou que dos aproximadamente 600 mil liquidadores, nome que se deu aos homens — entre eles militares, operários e voluntários — que se encarregaram de construir o sarcófago que conteria a radiação liberada durante o acidente nuclear e minimizaria as consequências do desastre, 8553 morreram entre 1990 e 2003 — uma média de duas pessoas por dia — segundo dados do Ministério da Saúde?

A desinformação e o silêncio dos soviéticos aniquilou parte da população bielorrussa, russa, ucraniana. Dizem que morreram pessoas até na África por conta das chuvas radioativas. Antes de Tchernóbil, havia 82 casos de doenças oncológicas para cada 100 mil habitantes. Hoje, indica-se que há 6 mil doentes para os mesmos cem 100 habitantes — uma multiplicação de quase setenta e quatro vezes.

O que é mais fantasmagórico, é não poder ver nem sentir o cheiro da radiação. “A terra era a mesma, você era o mesmo, mas tudo mudou”, escreve Svetlana.

Entre as histórias contadas no livro, há também as de amor, tendo as tragédias como pano de fundo. Um amor que diminui a dor e o sofrimento, um amor que cura as feridas do coração. Como deixou claro a escritora, “a única saída para nós é o amor”. Aproveito então para citar mais uma ucraniana nesse texto: Clarice Lispector. Precisamos amar “apesar de”.