Meu avô

Crônica
outubro de 2015

Dez da noite tocou o telefone. Na voz da minha mãe, dor. Todo o esforço que ela fez há uns dez anos, de se mudar para ficar mais perto dele, foi compensado ontem. Ontem, quando ela só precisou cruzar o corredor. Precisava, e ao mesmo tempo não queria, porque suspeitava que talvez aquele pequeno trajeto nunca mais fosse o mesmo.

Assim que soube do chamado, não houve obstáculo, nem tempo para raciocinar enquanto dirigia: saiu do 402 em direção ao 401. Só existiu trânsito de pensamentos que se sobrepunham enquanto minha mãe o olhava inerte, um corpo, um corpo tão familiar e tão forte; ali no chão, tão frágil.

Fiquei sem avô. O primeiro se foi quando eu ainda não realizava direito o que era ter um avô, não tinha me apegado a essa figura de um pai de outra geração. Pena. E aí restou vovô, o único, o avô que de longe era sério, um homem de mais de um e noventa de altura, alemão e ríspido quando queria. Mas de perto, só falava besteira e gostava de implicar com os netinhos. E de cantigas germânicas, que ele ensinou a mim e meu irmão numa viagem à Alemanha.

Ontem, por volta das nove e cinquenta, vovô desacordou. Saiu do ar, a antena perdendo o alcance, os músculos perdendo os movimentos, a pele perdendo a cor.

Meu avô foi soldado de guerra. Quase morreu, viu gente morrer e passou fome. Viu amigos pelo chão, viu a dor, sentiu a dor. Meu avô foi soldado da vida. Vovô teve cânceres, livrou-se deles e passou raspando pela morte, que tantas vezes o teve na mira. Capitulou, enfim, quando cansou-se da batalha; a morte foi oponente covarde e meu avô se rendeu. Partiu devagar, de vez, foi-se para sempre.

Foram vinte minutos de massagem cardíaca, os capacetes do SAMU pelo chão, os macacões cáqui, o barulho da máquina que desenhava uma linha reta que não se mexia no monitor, minha mãe parada, chorando baixinho, fazendo carinho na canela fria do meu avô. E eu ali, inútil, espectadora do seu fim, o gosto amargo da impotência. Eu sabia que ele precisava ir, aqueles minutos sem ar descaracterizariam o avô que me teve como neta por vinte e três anos. Vovô lutou mais uma vez para ser livre.

A morte é um impacto, um susto, uma anomalia. A muda explosão de um corpo. Um fracasso de Deus.

Mas a morte não termina no fim. Quando confirmada a recente inexistência de meu avô, as providências: embrulhá-lo num lençol, vesti-lo antes do corpo endurecer, organizar o enterro, transportá-lo para o carro funerário, reservar uma capela no cemitério, avisar familiares e amigos. Criar familiaridade com palavras que não faziam parte do meu vocabulário normalmente: “jazigo”, “sarcófago”, “lápide”, “sepultura”. Fora as bizarrices: “catálogo de caixões”, “quebrar os ossos do defunto se demorar demais para vestir”. Na confusão, fui eu que acabei escolhendo a roupa que meu avô vestiria para a eternidade: um terno azul marinho, uma camisa toda branca, meias também azuis. Não se coloca sapato em morto, não sei o porquê.

A cabeça pesada das poucas horas dormidas e do choro. Por que chorar cansa tanto assim? Eu estava esgotada, mas tinha que me fazer sobra para minha mãe, que desde cedo resolvia as burocracias da morte.

No velório, por cima do terno que escolhi, vestiram meu avô de rosas. E todos que estavam ali o cobriram, enfim, de amor. Era estranho pensar que eu nunca mais ia ver os dentes separados dele, tocar sua pele fininha, ouvir ele dizer que apesar dos meus anos a mais, eu ia ser sempre criança nos seus olhos. Essa finitude que a morte impõe aperta o coração. Construí meu avô com o que a morte não leva: memórias. A forma dele de subir escadas, na diagonal para os degraus parecerem menores, a mania de arquear as sobrancelhas na bravura singela, os olhos que quase se fechavam por completo quando ele ria.

Vovô não está mais aqui, mas ele vive em nós — tem muito dele no cruzar de pernas e nas mãos do meu irmão, por exemplo. Nós somos o legado e, enquanto estivermos aqui, ele vai  continuar conosco nos retratos e nas lembranças.