O filho de alguém

Crônica
agosto de 2015

Eu queria falar da Turquia, a Turquia turística — sexto destino mais visitado do mundo —, onde estive de férias por duas semanas. Mas não consigo. Não consigo, ainda, falar da Turquia sem lembrar da imagem do pequeno Aylan Kurdi, de três anos — vestidinho de camiseta vermelha, calça azul e tênis, as palminhas das mãos viradas para cima, o rostinho desacordado colado na areia — em sono que não deveria estar dormindo — e que tira o nosso. Ele foi encontrado nas areias de Bodrum, por onde passei. Como estive perto do drama vivido pelos que tentam salvar suas vidas.

Talvez não tivéssemos conhecido Aylan se ele não se tornasse mártir dos refugiados do Oriente Médio — essa terra tão disputada e castigada por ódios infundados e intolerância cega — desesperados por fugir da guerra e da destruição. Esses imigrantes escapam como podem, porque não podem ficar. Fora a guerra que deixaram para trás, enfrentam outra luta: a de chegar à Europa e cruzar as fronteiras de países precários em solidariedade que ainda não entenderam que #NoHumanIsIllegal. É claro que há exceções, como a recepção calorosa dos refugiados pelos alemães (http://www.middleeasteye.net/news/how-one-german-town-welcomed-coachload-syrian-refugees-1941795119) e o pedido da Islândia pelo envio de mais imigrantes.

Não se coloca os filhos num barco a não ser que o mar seja mais seguro que a terra: a guerra civil na Síria não é nenhuma novidade e veio se intensificando em 2014 com o aumento dos conflitos entre o governo e grupos contra o presidente, Bashar Al-Assad, entre eles o Jabhat al-Nusra, associado à Al Qaeda, e o Estado Islâmico. Por enquanto, foram contabilizados quase 250 mil mortes, entre as quais, 12 mil crianças. Isso mesmo: C-R-I-A-N-Ç-A-S. Daria para encher 600 parquinhos.

E a imagem de Aylan não repousa sozinha no rol das fotos que nos chacoalharam e gritaram nossa atenção para conflitos e questões sociais ao redor do mundo. Quem não se lembra da menina nua correndo pela vida, em 1972, na Guerra do Vietnam? E da “garota afegã”, fotografada em 1984 no Paquistão, onde se refugiou, durante a ocupação russa em seu país? Da foto de 1993 de uma criança subnutrida em frente a um abutre no Sudão? Aylan se junta a essa exposição de fotografias dos desastres da humanidade. 

Aylan só queria atravessar para Kos, uma ilha grega, mas a não-chegada lhe fez correr o mundo, estampando capas de jornais e gerando compartilhamentos em massa nas redes sociais. Como um Pinocchio — boneco que queria virar gente — Aylan era apenas um menino sírio, sua pátria em ruínas, que queria ser gente (longe dali).